O Código Civil prevê que o devedor não é responsável por danos em caso de caso fortuito ou força maior, a menos que tenha assumido essa responsabilidade expressamente.
Refletindo sobre quais são as alternativas disponíveis ao credor, no âmbito de um dado contrato, na hipótese da ocorrência de caso fortuito ou de força maior, devemos recorrer, como ponto de partida, ao art. 393 do Código Civil, o qual estabelece que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou de força maior, se não expressamente não se houver por eles responsabilizado. O parágrafo único, por seu turno, explica que o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos eram inevitáveis ou não se podia impedir.
A par da previsão legal, há quem distinga o caso fortuito da força maior. Para alguns, caso fortuito corresponderia ao evento natural ou humano imprevisível, enquanto a força maior, ao evento previsível cujos efeitos são inevitáveis. Para outros, o caso fortuito consistiria num evento natural enquanto a força maior, num evento humano.
Segundo o advogado e empresário Marcelo de Freitas e Castro, indo mais além, outros doutrinadores diferenciam o fortuito interno, que está relacionado à atividade do fornecedor [nas relações de consumo], do fortuito externo, relacionado a causas estranhas à atividade do fornecedor.
Nessa linha de raciocínio, o fato imprevisível e inevitável que esteja vinculado à fabricação do produto ou à realização do serviço, entendido como “fortuito interno“, não excluiria a responsabilidade do fornecedor, enquanto, o “fortuito externo“, ou seja, o fato que não tenha relação com a atividade do fornecedor, elidiria a sua responsabilidade.
Esse é o entendimento, aliás, adotado pelo STJ, ao analisar o caso fortuito e força maior e os limites da responsabilização1, contudo sem distinguir caso fortuito da força maior1:
“Segundo o ministro do STJ Luis Felipe Salomão, o caso fortuito e a força maior têm sido entendidos atualmente pela jurisprudência como espécies do gênero fortuito externo, no qual se enquadra a culpa exclusiva de terceiros. Para o ministro, nesse gênero, o fato tem de ser imprevisível e inevitável, estranho à organização da empresa“.
Ainda de acordo com Salomão, o gênero fortuito interno, “apesar de também ser imprevisível e inevitável, relaciona-se aos riscos da atividade, inserindo-se na estrutura do negócio” (REsp 1.450.434).
O ministro explicou que a doutrina, ao destacar essa distinção entre o caso fortuito interno e o caso fortuito externo, entende que apenas quando se tratar da segunda hipótese [fortuito externo] haverá excludente de responsabilidade.”
Já no campo do direito contratual, à luz dos princípios da autonomia da vontade, do consensualismo e da boa-fé objetiva, espera-se que, em regra, as partes cumpram os seus deveres assumidos no contrato, a menos que sobrevenha situação excepcionalíssima que justifique seu inadimplemento.
Ainda que estejamos diante de um caso fortuito ou de força maior, para que este sustente a aplicação do art. 393 do Código Civil, imprescindível se faz a análise do caso em concreto.
A partir daí, aplicando-se a mesma concepção acerca da distinção entre fortuito interno e externo, em se tratando de um fato necessário, de efeitos inevitáveis ou que não se podiam impedir, decorrentes da atividade do próprio devedor, ou seja, configurado o fortuito interno, não haverá possibilidade, a princípio, do devedor de se eximir de sua reponsabilidade.
Aliás, esse também foi o entendimento adotado pelo STJ no julgamento de Agravo Interno em Agravo em REsp2, em processo envolvendo contrato de transporte, em que se entendeu que a responsabilidade do transportador em relação aos passageiros, somente poderia ser elidida por fortuito externo, força maior, fato exclusivo da vítima ou por fato doloso e exclusivo de terceiro, quando não há conexão com a atividade, afastando das hipóteses excludentes o fortuito interno, não obstante nesse caso, haja a peculiaridade da responsabilidade objetiva do transportador.
Em outro Agravo Interno, no REsp, o relator do processo, ministro Humberto Martins3, ratificou a decisão do Tribunal de Justiça, que afastou a alegação de caso fortuito ou força maior pela construtora, em contrato de adesão de compra e venda de imóvel, na tentativa de justificar o atraso da obra e a entrega do empreendimento, em período superior ao prazo de tolerância de 180 dias, uma vez que as justificativas apresentadas eram, segundo entendeu o Tribunal, relacionadas ao risco do empreendimento, caracterizando fortuito interno, não apto a isentar a construtora da responsabilidade.
Freitas e Castro sobre outro prisma, interessante julgado do TJ/SP4 bem ilustra a caracterização do fortuito externo, em voto que reverteu a decisão de primeiro grau, para excluir a responsabilidade da instituição financeira ré, no caso em que esta havia sido condenada a restituir ao autor valor pago a terceiro, além de responder por dano moral. Considerando que o autor da ação havia sido vítima de golpe, não tendo adotado as cautelas necessárias e tendo realizado o pagamento de boleto a beneficiário pessoa física, sem nenhuma relação com o banco, e, além disso, não tendo apresentado qualquer prova de que o valor pago tenha sido revertido à instituição financeira, o Tribunal reconheceu se tratar de hipótese de fortuito externo, a elidir a responsabilidade do réu, uma vez não caracterizada a falha na prestação do serviços, por culpa exclusiva da vítima e ausente o nexo causal.
Admitir entendimento diverso, ou seja, em que qualquer caso fortuito ou de força maior possa servir de escusa para a quebra contratual por parte do devedor, isentando este do cumprimento de suas obrigações, geraria total insegurança jurídica e afronta aos princípios contratuais.
Tal situação foi percebida claramente quando da recente pandemia do coronavírus, em que alguns se valeram da situação, certamente inesperada, para pleitear, com fulcro no art. 393 do Código Civil, a isenção de obrigações diversas, inclusive as decorrentes do próprio risco do negócio, ou seja, do fortuito interno, o que se verificou, não foi acatado pelo Judiciário, em muitos casos, sob o argumento de não caracterização do fortuito externo e ou por ter a pandemia afetado ambas as partes do contrato, e não somente uma delas.
Num recurso de Apelação Cível, em Mandado de Segurança5, interposto pela impetrante, vez que a segurança fora denegada em primeiro grau, o recurso acabou não tendo provimento, uma vez que a relatora entendeu ter sido a decisão acertada. No caso, a impetrante alegou caso fortuito ou força maior em razão da pandemia, como justificativa para atraso no fornecimento em contrato administrativo decorrente de pregão eletrônico. No entanto, verificou-se, no caso em concreto, que “os efeitos causados pela pandemia na oferta de componentes importados já estavam estabelecidos quando da elaboração da proposta”. Afinal, o Edital do certame havia sido publicado no transcurso da pandemia.
Desse modo, pode-se concluir que somente a análise acurada de cada caso específico permitirá livrar o devedor de suas obrigações perante um contrato, diante de caso fortuito ou força maior, se verificado o fortuito externo a justificar a isenção prevista no Código Civil, sempre pautados nos princípios contratuais, mormente na boa-fé que deve nortear a contratação, inclusive antes e posteriormente ao encerramento do contrato.