Segundo o advogado e empresário Marcelo de Freitas e Castro a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), em sua redação original, não previa, expressamente , a possibilidade de responsabilização de pessoas jurídicas por atos de improbidade.
Em razão dessa lacuna, algumas vozes defendiam a tese de que as pessoas jurídicas não estavam sujeitas às sanções da LIA. Juristas renomados, sustentava que o terceiro jamais poderia ser pessoa jurídica. Segundo o autor, as condutas de indução e colaboração são próprias de pessoas físicas. Quanto à obtenção de benefícios indevidos, tal conduta pressupõe dolo, elemento subjetivo incompatível com a responsabilização de pessoa jurídica.
Em sentido contrário, a maior parte da doutrina defendia a possibilidade de punição das pessoas jurídicas no domínio da LIA. Isso porque, contrariamente ao que ocorre com o agente público, necessariamente pessoa física, o art. 3.º da LIA não fazia nenhuma distinção em relação aos terceiros, o que permitia concluir que as pessoas jurídicas também estavam incluídas sob tal epígrafe.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acabou encampando esse segundo entendimento. Para a Corte Superior, essa diretriz não impede que, juntamente com a pessoa jurídica, sejam incluídos no polo passivo da ação de improbidade administrativa os sócios e gestores que tenham participado da prática do ilícito ou dele se beneficiado, os quais responderão com o seu patrimônio pessoal, apenas não configurando tal conduta uma obrigatoriedade [4].
A reforma promovida na Lei de Improbidade Administrativa pela Lei 14.230/2021 esvaziou essa discussão. Isso porque o parágrafo único do artigo 2.º passou a admitir a aplicação das penas da Lei 8.429/1992 às pessoas jurídicas de direito privado que recebam recursos públicos por meio da celebração de ajustes com a administração pública.
Seguindo essa mesma trilha, os parágrafos 1.º e 2.º do artigo 3.º da LIA também admitem a responsabilização das pessoas jurídicas no sistema da LIA. Confira-se:
Art. 3º (…)
1º Os sócios, os cotistas, os diretores e os colaboradores de pessoa jurídica de direito privado não respondem pelo ato de improbidade que venha a ser imputado à pessoa jurídica, salvo se, comprovadamente, houver participação e benefícios diretos, caso em que responderão nos limites da sua participação.
2º As sanções desta Lei não se aplicarão à pessoa jurídica, caso o ato de improbidade administrativa seja também sancionado como ato lesivo à administração pública de que trata a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.
Note-se que o § 1.º do artigo 3.º, ao disciplinar a responsabilização dos sócios, cotistas, diretores e colaboradores de entes privados admite literalmente a imputação de atos improbidade administrativa à pessoa jurídica. Da mesma forma, o § 2.º admite a aplicação das sanções da LIA às pessoas jurídicas, ressalvada a hipótese em que oato ilícito também seja sancionado como ato lesivo à administração pública de que cuida a Lei Anticorrupção Empresarial (Lei 12.846/2013).
Essa ideia é reforçada no artigo 12, § 3º, da LIA, que estabelece que na “responsabilização da pessoa jurídica, deverão ser considerados os efeitos econômicos e sociais das sanções, de modo a viabilizar a manutenção de suas atividades”.
Nesse contexto, dúvidas não há de que a pessoa jurídica de direito privado está sujeita às sanções da LIA.
Fixada tal premissa, questão interessante consiste em saber qual é o regime jurídico de responsabilidade das pessoas jurídicas no domínio da LIA. Dito de outro modo, quais são os pressupostos para a punição de uma pessoa jurídica no sistema da Lei 8.429/1992?
Se, por um lado, a previsão expressa da possibilidade de punição das pessoas jurídicas no domínio da LIA representa um avanço promovido pela reforma, por outro lado, não podemos deixar de criticar o fato de a Lei 14.230/2021 não ter disciplinado, de maneira expressa, o regime jurídico dessa responsabilidade.
Diante da lacuna da LIA, entendemos aplicável, por analogia, o regime de responsabilização das pessoas jurídicas previsto na Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção Empresarial — LAE), que integra o microssistema de defesa do patrimônio público.
A LAE estabelece em seu artigo 2.º a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, nas esferas cível e administrativa. Confira-se:
Art. 2º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não.
O dispositivo em análise assinala explicitamente o propósito de atribuir à pessoa jurídica a responsabilização objetiva pelos atos lesivos descritos na LAE, quando praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não.
Sucede que todos os tipos legais previstos no artigo 5º da LAE se referem a condutas humanas dolosas. Não há previsão típica referida à atividade. Significa dizer que apenas a pessoa física pode satisfazer as exigências típicas.
Se os atos ilícitos que a LAE busca punir só podem ser praticados por meio de conduta dolosa, de que modo subsiste a responsabilização objetiva das pessoas jurídicas em cujo interesse ou benefício o ilícito foi realizado?
O que a LAE faz é conceber a existência de duas normas jurídicas que, conjugadas, fazem nascer a responsabilização.
Uma primeira norma descreve o comportamento doloso do agente faltoso – pessoa natural vinculada, de alguma forma, à pessoa jurídica em cujo interesse ou benefício o ato foi realizado. Uma segunda norma prevê a responsabilização objetiva da pessoa jurídica tendo, por pressuposto, o ilícito cometido.
Na sistemática da LAE, portanto, a ocorrência do ato lesivo é investigada segundo o comportamento subjetivo do agente faltoso. Uma vez verificada a existência do ilícito, deflagra-se a responsabilização objetiva da pessoa jurídica. E, porque objetiva a responsabilidade, a sociedade empresária não poderá alegar que desconhecia a conduta do agente faltoso — pessoa natural a ela vinculada, de alguma maneira.
Pode-se afirmar, assim, que a responsabilidade das pessoas jurídicas pelos atos lesivos à Administração Pública é indireta, decorrente da conduta de pessoa física que pratica o ato lesivo em seu benefício ou interesse.
Essa mesma sistemática pode ser aplicada no domínio da LIA, em que todos os tipos legais de improbidade administrativa previstos nos artigos 9.º, 10 e 11 também só se aperfeiçoam mediante condutas humanas dolosas. Aqui, outrossim, não há previsão típica referida à atividade, de onde se conclui que apenas a pessoa física pode satisfazer as exigências típicas. Nessa quadra, para que a pessoa jurídica responda, é necessário provar a conduta dolosa da pessoa natural a ela vinculada, em concurso com um agente público. Fala-se, então, em responsabilidade objetiva indireta ou objetiva impura, conforme a doutrina de Álvaro Villaça Azevedo.
Cabe lembrar que na ordem jurídica brasileira os empregadores respondem objetivamente pelos ilícitos civis dos seus empregados (artigos 932, III, e 933, ambos do Código Civil), o que só reforça a linha interpretativa proposta.
Muito embora o foco principal da LIA seja a responsabilização dos agentes públicos, a norma prevista em seu artigo 3.º deixa claro que isso não exclui a responsabilidade das pessoas físicas que, mesmo não sendo agentes públicos, induzam ou concorram dolosamente para a prática do ato de improbidade administrativa, tampouco das pessoas jurídicas em cujo interesse ou benefício o ilícito foi cometido.
São três, portanto, os pressupostos da responsabilidade da pessoa jurídica pelos atos de improbidade administrativa previstos nos artigos 9.º, 10 e 11 da LIA:
9 subsunção da conduta nas tipologias dos arts. 9.º, 10 ou 11 da LIA: na sistemática da Lei 8.429/1992, a ocorrência do ato de improbidade administrativa é investigada segundo o comportamento subjetivo do agente faltoso;
10 conduta realizada no interesse ou em benefício da pessoa jurídica, exclusivo ou não (art. 2.º da LAE): trata-se de pressuposto semelhante ao da responsabilização administrativa, civil e penal da pessoa jurídica por atividades lesivas ao meio ambiente. É necessário demonstrar que o ato de improbidade administrativa visava atender aos interesses da pessoa jurídica ou lhe trazer algum benefício, ainda que não exclusivos;
11 existência de algum vínculo entre a pessoa física que induziu ou concorreu para a prática do ato de improbidade e a pessoa jurídica beneficiada: note-se que a LIA, em seus artigos 2º e 3º, ao admitir a responsabilização das pessoas jurídicas, não exige que o ato tenha sido praticado por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no que se difere da Lei nº 9.605/1998, que traz tal exigência em seu artigo 3º, para as hipóteses de responsabilização administrativa, civil e penal das pessoas jurídicas pela prática de infrações ambientais. Tal regramento torna possível a punição da pessoa jurídica no domínio da Lei 8.429/1992, independentemente da responsabilização de seu representante legal ou contratual. Isso não significa dizer, contudo, que a LIA adotou uma concepção amplíssima de responsabilidade objetiva, em que se admite a responsabilização da pessoa jurídica por atos de quaisquer terceiros. Essa não parece ser a melhor hermenêutica. Se, por um lado, a LIA não limitou a possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas às hipóteses de atos praticados por decisão de seus representantes legais ou contratuais, ou de seus órgãos colegiados, por outro, não estendeu essa possibilidade à prática de atos por terceiros que não guardem nenhum tipo de vínculo com o ente abstrato. A interpretação que parece mais consentânea com a ratio legis e com os artigos 2º e 3º da LIA é a de que o ato lesivo deve ter sido praticado por pessoa natural vinculada, de algum modo, à pessoa jurídica beneficiada com o ato de improbidade. Entendimento diverso estaria, na verdade, dispensando a prova do próprio nexo de causalidade entre a atividade desenvolvida pela pessoa jurídica e o dano causado à Administração Pública, o que, embora tecnicamente possível (seria uma espécie de presunção absoluta), é absolutamente excepcional. Importante: a ausência de qualquer referência, quer seja na LIA, quer seja na LAE, ao tipo de vínculo entre a pessoa física autora ou partícipe do ato ilício e a pessoa jurídica indica que a legislação trilhou opção ampliativa, isto é, optou-se pela não exigência de vínculo formal. Assim, se a pessoa natural se comporta como representante da pessoa jurídica ou atua para satisfazer seus interesses, sem oposição desta, perante a Administração Pública e terceiros, haverá relação apta a gerar a responsabilização no domínio da LIA, independentemente da existência de vínculo formal entre o agente particular infrator e a empresa.
Por fim, registre-se que a aplicação da LIA às pessoas jurídicas deve ser feita naquilo que couber. Dúvidas não há de que as pessoas jurídicas poderão ser condenadas à reparação dos danos causados ao patrimônio público, bem como à restituição dos bens acrescidos ilicitamente ao seu patrimônio.
Da mesma forma, poderão ser penalizadas com a multa civil e a proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócia majoritário. Sem embargo, às pessoas jurídicas não poderão ser aplicadas as penas de perda da função pública e suspensão dos direitos políticos, por incompatibilidade material.